quinta-feira, 3 de junho de 2010

OS CONFLITOS INDO-PAQUISTANESES 2º Ano




O Subcontinente Indiano e a Ásia Central


A Índia, com 1,1 bilhão de habitantes, é a segunda potência demográfica mundial. As projeções indicam que por volta de 2040 será de 1,5 bilhão de habitantes, ultrapassando a China . O Estado mais poderos da Ásia Meridional ocupa posição dominante no Indostão ou Subcontinente Indiano. A sua rivalidade histórica com o Paquistão configura um dos principais focos de tensões pós-Guerra Fria.
O Estado indiano caracteriza-se antes de tudo pela diversidade, que é étnica, lingüística, religiosa e cultural. O hindi, língua nacional, é utilizado por pouco mais de um terço da população e convive com catorze outras línguas oficiais. O inglês é a língua das elites. Centenas de dialetos regionais convivem na Babel indiana.
A religião majoritária, o hinduísmo, congrega cerca de 81% da população. A minoria muçulmana está concentrada na Índia setentrional, e perfaz 12% da população — o que equivale a cerca de 130 milhões de habitantes e torna a Índia o segundo maior país muçulmano do mundo, superado apenas pela Indonésia.
Existem inúmeras outras minorias religiosas, entre as quais se destacam, em função do papel político que desempenham, os 20 milhões de sikhs do Punjab. O sistema de castas da cultura hindu divide a população em 3 mil castas e 25 mil subcastas. As castas funcionam como realidade social profunda, resistente às mudanças e à modernização. Mesmo não reconhecido pela Constituição e enfraquecido no meio urbano, o sistema de castas continua a estruturar as relações sociais no meio rural, onde vivem quase 70% dos indianos.
A pluralidade social e cultural da índia reflete o mosaico de civilizações que floresce¬ram no Indostão. Mas essa pluralidade entra em contradição com a coesão que costuma caracterizar o Estado-Nação contemporâneo e se expressa numa miríade de conflitos e tensões regionais. Os dois maiores focos de conflitos separatistas são a Caxemira, onde se desenvolve a disputa internacional com o Paquistão, e o Punjab, que é palco do movimento separatista dos sikhs. Mas o eixo principal de tensões, em escala nacional, é formado pela rivalidade entre a maioria hindu e a minoria muçulmana.
Essa é uma rivalidade de fundas raízes históricas, ligadas às conquistas muçulmanas na Índia setentrional, a partir do século XIII. Mas as tensões contemporâneas entre as duas grandes religiões do Subcontinente Indiano emergiram junto com a partição da Índia britânica, em 1947. A criação do Paquistão como Estado muçulmano gerou identidades nacionais erguidas sobre alicerces religiosos. Essa identificação entre nação e religião é explícita no Paquistão. Na Índia, embora oficialmente rejeitada, constitui uma realidade política e cultural inegável.
O Congresso Nacional Indiano (CNI) parteiro da Índia independente, concebeu um Estado laico e democrático, fundado na separação entre a esfera pública da política e a esfera privada da religião. A democracia indiana produz, periodicamente e sem interrupção desde a independência, o espetáculo das maiores eleições livres de todo o mundo. Esse é o esteio mais firme da unidade da Índia. Contudo, na década de 1990, o acirramento dos conflitos entre hindus e muçulmanos configurou uma ameaça real ao caráter laico e democrático do Estado indiano. As tensões religiosas adquiriram intensidade e dramatismo em 1992-93, quando eclodiram sangrentos confrontos entre hindus e muçulmanos no vale do Ganges e na Índia Ocidental. Esses episódios enraizaram o Bharatiya Janata Party (BJP), partido nacionalista hindu, entre as populações da Índia setentrional. O desgaste crescente do Partido do Congresso, atingido por desmoralizadores escândalos de corrupção, conferiu ainda maior apelo ao BJP, principalmente nos grandes centros urbanos. Em 1998, pela primeira vez, o BJP conseguiu uma clara hegemonia parlamentar e liderou o governo até 2003. No ano seguinte, o CNI venceu as eleições e voltou ao poder. Atualmente, a dinâmica política da Índia organiza-se com base em alianças que se formam em torno de um ou outro dos dois grandes partidos.
Por princípio, os nacionalistas do BJP identificam a nação indiana à religião hindu. Nos seus primeiros tempos, quando constituíam um pequeno núcleo oposicionista, os líderes do BJP prometiam mudar a Constituição e conferir privilégios aos hindus. O discurso fundamentalista amenizou-se aos poucos e tendeu a tornar-se vestigial depois da chegada do partido ao poder. Mas os muçulmanos temem que os velhos princípios se expressem, eventualmente, como política de governo. Nessa hipótese, o Estado in-diano estaria colocado diante de uma encruzilhada histórica e as bases institucionais da unidade da Índia teriam sido violentamente solapadas.
A política externa indiana conservou notável coerência, desde a independência. O neutralismo, elaborado no governo de Nehru, expressou-se ativamente pela participação, em posição de liderança, no Movimento dos Países Não-Alinhados. Durante a Guerra Fria, a índia não integrou o dispositivo de alianças militares pró-ocidentais na orla asiática e firmou tratados de cooperação econômica e tecnológica com Moscou.
A Índia sempre procurou firmar a sua liderança no Indostão. A rivalidade com o Paquistão a conduziu a prestar apoio militar à secessão do Paquistão Oriental (Bengala), que originou o Estado de Bangladesh. A Índia mantém disputas de fronteiras com Bangladesh e o Nepal. Contudo, a disputa realmente explosiva é a que envolve o Paquistão e a China e tem por foco a Caxemira.
O encerramento da Guerra Fria e a implosão da União Soviética aprofundaram drasticamente a percepção de insegurança da Índia. No plano geopolítico, a ameaça continental representada pela China deixou de ser contrabalançada pelos laços espe-ciais tecidos com a União Soviética. À ameaça continental, soma-se a ameaça regional, representada pelo Paquistão. O ambiente externo hostil tem provocado, como reações, a aceleração do programa nuclear e uma disposição para o estreitamento de relações com os Estados Unidos. É nesse contexto que se situa a estratégia de modernização e liberalização de uma economia que mescla fundamentos arcaicos com elementos de surpreendente dinamismo.




O conflito indo-paquistanês

A rivalidade regional entre a Índia e o Paquistão tem as suas raízes na estratégia britânica de descolonização e nas divergências entre o Partido do Congresso e a Liga Muçulmana, que conduziram à bipartição da União Indiana segundo critérios político-religiosos. A soberania sobre a Caxemira, região encravada na faixa de fronteiras do Himalaia, fixou-se como foco mais importante da rivalidade entre os dois novos Estados.
Em outubro de 1947, a Caxemira tornou-se palco da primeira guerra indo-paquistanesa. Confrontado com uma invasão de forças tribais paquistanesas, o marajá hindu que governava a região majoritariamente muçulmana optou pela adesão à Índia, embora preferisse a independência. Uma resolução do Conselho de Segurança da ONU, em abril de 1948, exigiu a retirada das forças paquistanesas e determinou a realização de um plebiscito regional sobre a adesão à Índia ou ao Paquistão.
O plebiscito jamais foi realizado e a Caxemira passou a refletir o antagonismo entre os princípios de construção nacional dos Estados rivais. O Paquistão ergueu-se sobre o princípio das "duas nações", segundo o qual a religião define as identidades nacionais distintas de paquistaneses e indianos. Esse princípio fundamenta a reivindicação de soberania sobre o território da Caxemira. Por outro lado, o princípio nacional indiano assenta-se sobre a precedência da língua e da cultura. A independência de Bangladesh, habitada majoritariamente por muçulmanos, é apresentada pela Índia como prova de que a identidade nacional não está ancorada no princípio religioso.
A Caxemira é uma região histórico-geográfica situada na faixa de contato entre a Ásia Central muçulmana e as civilizações indiana e chinesa. Com território de aproximadamente 220 mil km2, é atravessada por duas cadeias montanhosas paralelas: o Hindu-Kush e o Himalaia. A maior parte da região está situada em cotas de 2 a 6 mil metros de altitude e diversos picos ultrapassam os 7 mil metros. Entre o Hindu-Kush e o Himalaia encontra-se o vale do rio Indo, que nasce nos altos planaltos tibetanos do sudoeste da China e percorre quase toda a Caxemira, antes de entrar no Paquistão. Na primeira metade da década de 1960, duas guerras explodiram na Caxemira. O estatuto regional atual é produto desses conflitos. Atualmente, a Caxemira abriga pouco mais de 10 milhões de habitantes e está dividida entre Índia, Paquistão e China.
A Caxemira indiana, com pouco mais de 100 mil km2e cerca de 6,5 milhões de habitantes, corresponde ao Estado de Jamu-Caxemira, o único de maioria demográfica muçulmana. Uma linha de controle separa o Estado de Jamu-Caxemira da Caxemira paquistanesa (a chamada "Caxemira Livre"), que ocupa cerca de 78 mil km2 e abriga quase 3,5 milhões de habitantes, na sua maioria muçulmanos xiitas. A "Caxemira Livre" dispõe de autonomia limitada e funciona, do ponto de vista da propaganda paquistanesa, como modelo político para a administração futura de uma Caxemira reunificada. A Caxemira chinesa foi, em parte, conquistada na guerra sino-indiana de 1962. Com apenas cerca de 40 mil km2 e alguns milhares de habitantes, corres¬ponde quase totalmente à área do Aksai Chin, que está ligada à região autônoma do Tibete.
A Índia considera toda a região como parte integrante de seu território. O Paquistão considera-se um "país incompleto", enquanto não conseguir a incorporação da Caxemira. Oficialmente, a China aceita discutir o futuro das áreas que controla, mediante um acordo bilateral prévio entre Índia e Paquistão. Uma pesquisa independente de opinião conduzida entre os habitantes da região em 1995 apurou larga maioria favorável à independência.
Por suas próprias faltas, a Índia perdeu os corações e mentes dos habitantes da Caxemira. Nos tempos de Nehru), o mais popular líder muçulmano regional, xeque Muhammad Khan, preferia o secularismo indiano ao sectarismo religioso paquistanês. Mas quando o xeque flertou com a ideia da independência, conheceu a prisão na Índia.
A guerra de 1962 e o desenvolvimento do programa nuclear chinês, até o teste atômico de 1964, impulsionaram os esforços indianos para a construção de um artefato atômico. Em 1974, a Índia conduziu o seu primeiro teste nuclear e definiu a sua política, que consiste na combinação da "dissuasão mínima" e da doutrina de uso do arsenal nuclear apenas em resposta a uma agressão nuclear prévia.
No plano internacional, a Índia assumiu a linha de frente da crítica ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), consubstanciando a sua política em sucessivas propostas voltadas para o desarmamento nuclear global. Em função da sua política externa neutralista, a Índia se distingue crucialmente dos países europeus e do Japão, pois não dispõe da segurança fornecida pelos Estados Unidos. Assim, do ponto de vista de Nova Délhi, o TNP representava, pura e simplesmente, o congelamento da vulnerabilidade indiana diante da China. Na década de 1990, a implosão da União Soviética e o fortalecimento econômico e militar da China acenderam luzes vermelhas entre os estrategistas de Nova Délhi. Esse foi o pano de fundo dos cinco testes nucleares conduzidos pela índia no deserto do Rajastão, em maio de 1998.
Mas os testes indianos constituíram, mais especificamente, uma resposta à evolução dos tratados e regimes internacionais voltados para a não-proliferação nuclear. Em 1995, a vigência do TNP foi estendida indefinida e incondicionalmente. Em 1996, após uma série de explosões chinesas, foi assinado o tratado de banimento de testes nucleares. Esses eventos assinalaram o fracasso da diplomacia indiana voltada para o desarmamento nuclear e, sobretudo, ameaçaram congelar ou mesmo ampliar a vantagem estratégica da China diante da índia.
Os testes de 1998 evidenciaram a decisão estratégica da Índia de prosseguir no curso de edificação de uma dissuasão mínima contra a China, assegurando a modernização e o caráter operacional do seu pequeno arsenal nuclear. Mas, como era de se esperar, a lógica da situação aguçou a percepção de insegurança paquistanesa, provocando reação imediata. O Paquistão provavelmente dispunha da capacidade de construir um artefato nuclear desde meados da década de 1980. Contudo, essa capacidade foi evidenciada pelos seis testes no Baluquistão realizados logo depois das explosões indianas.
As explosões nucleares dos Estados rivais do Indostão estremeceram os alicerces de todo o edifício de não-proliferação erguido durante décadas e coroado pelo tratado de banimento de testes. O seu significado não pode ser minimizado: pela primeira vez, Estados que não fazem parte do Conselho de Segurança da ONU alçavam-se, abertamente, à condição de potên¬cias nucleares.
Nesse contexto, em meados de 1999, as tensões crescentes na Caxemira degeneraram, mais uma vez, em hostilidades abertas. Militantes muçulmanos, apoiados mais ou menos abertamente pelas forças armadas e organismos de segurança do Paquistão, avançaram através da linha de controle e ocuparam posições na porção indiana da região. A Índia intensificou o conflito, rejeitando propostas paquistanesas de mediação internacional e lançando ataques aéreos e de artilharia pesada. Durante algumas semanas, a ameaça de um desfecho nuclear pairou sobre os dois países, mas o enfrentamento terminou com a retirada das forças apoiadas pelo Paquistão.
O desenlace representou uma humilhação para a política externa paquistanesa, aprofundou a crise institucional no país e preparou terreno para a tomada do poder pelos militares. Mais importante que isso, o eco da artilharia nas alturas do Himalaia revelou a extrema fragilidade de toda a arquitetura estratégica asiática, que não está adaptada à existência das duas novas potências nucleares.



O "Grande Jogo" na Ásia Central

A Ásia Central é a macrorregião habitada por povos muçulmanos e formada pelo Afeganistão e cinco antigas repúblicas soviéticas — Casaquistão, Usbequistão, Turcomenistão, Tadjiquistão e Quirguistão. Ao norte, limita-se com a Rússia; a leste, com a China; ao sul, com o Paquistão; a oeste, com o Irã. Desde a Antiguidade, a Rota da Seda conectou o Mediterrâneo ao Subcontinente Indiano e à China, através da Ásia Central. Através dela, persas e turcos difundiram influências culturais, que se sedimentaram nas línguas e na religião dos inúmeros grupos étnicos centro-asiáticos.
No século XIX, russos e britânicos engajaram-se no "Grande Jogo", como ficou conhecida a longa disputa que se desenrolou no Afeganistão mas tinha por foco o controle do Indostão. O império russo tentava prosseguir a sua marcha de conquista na Ásia Central, até atingir o Oceano Índico. A Grã-Bretanha procurava consolidar a sua obra imperial no Indostão e ganhar acesso à rota interior para a Pérsia e a China. O "Grande Jogo" conduziu à delimitação das fronteiras do Afeganistão, em 1893. O novo Estado centro-asiático funcionaria como separação entre os domínios russos, ao norte, e britânicos, ao sul.
Em toda a macrorregião, as fronteiras dos Estados atuais separam grupos étnicos e culturais. Na China, vivem mais de 1 milhão de casaques. O Afeganistão abriga uma numerosa minoria de usbeques. Os tadjiques participam do tronco linguístico persa; os turcomenos, casaques e usbeques participam do tronco linguístico turco. O traçado das fronteiras reflete o poder das potências — Grã-Bretanha, Rússia e União Soviética — e não a história dos povos centro-asiáticos.
Na Ásia Central, especialmente na área do Mar Cáspio, encontram-se vastas reservas, em início de exploração, de gás natural e petróleo. A bacia do Cáspio abriga reservas comprovadas de 28 bilhões de barris de petróleo e quase 70 bilhões de barris equiva as prospecções encontram-se ainda em estágio inicial.
A maior parte dos campos de petróleo se encontram em território do Casaquistão e a maior parte do gás, sob o deserto do Turcomenistão. Embora muito menores que as do Golfo Pérsico, as reservas do Cáspio são grandes o suficiente para atrair investimentos bilionários das transnacionais do petróleo e para que a região já seja vista como a "nova fronteira" dos hidrocarbonetos. Sob a perspectiva dos investimentos estrangeiros, um dos grandes trunfos da bacia do Cáspio reside no fato de que, ao contrário do Golfo Pérsico, seus recursos estão disponíveis para exploração pelas grandes empresas ocidentais.
A bacia do Cáspio é a única vasta reserva de hidrocarbonetos distante de qualquer saída oceânica. A Rússia controla o grande duto que escoa petróleo e gás para o Mar Negro (rota 2, no mapa a seguir). Um outro duto, mais recente, parte do Azerbaijão e atinge o porto de Supsa, na Geórgia (rota 3). Apenas um gasoduto de pequena extensão, que conecta o Turcomenistão ao norte do Irã, inaugurado em 1997, evita o território russo. O novo "Grande Jogo" que se desenvolve na Ásia Central tem por foco as rotas dos futuros dutos que viabilizarão as exportações de petróleo e gás.
A "diplomacia dos dutos" na Ásia Central é um jogo complexo, pois os interesses empresariais muitas vezes estão em conflito com os interesses geopolíticos. A Rússia pressiona pela construção de um novo duto, ligando o Casaquistão ao Mar Negro, atra-vés do seu território (rota 1), e pela interligação das reservas casaques ao seu sistema nacional de dutos (rota 4). Todas essas soluções tendem a reforçar o poder de Moscou sobre a antiga Ásia Central soviética.
A China participa ativamente da "diplomacia dos dutos", com o projeto de uma rota oriental que conectaria as reservas do Casaquistão ao seu território (rota 10). Esse duto percorreria cerca de 2 mil quilômetros apenas em território casaque, envolvendo custos astronômicos. As suas justificativas não se encontram na esfera da economia, mas na da geopolítica.
As rotas ocidentais são as preferidas pelos Estados Unidos, mas a Turquia alega que o Estreito de Bósforo não comporta a expansão do trânsito de superpetroleiros. Nessas condições, Washington parece apostar na construção de um duto ligando a Geórgia ao porto turco de Ceyhan, no Mediterrâneo (rota 5). Essa solução, evidentemente, agrada à Turquia e às antigas repúblicas soviéticas do Cáucaso. Contudo, envolve custos elevados, inclusive de construção de dutos transcaspianos (rotas 6 e 7).
Do ponto de vista empresarial, as melhores soluções são as rotas meridionais. Con¬tudo, essas rotas apresentam sérios inconvenientes estratégicos. Há projetos de conexões entre o Turcomenistão e o Mar Mediterrâneo ou o Golfo Pérsico, através do Irã (rotas 8 e 9). Mas esses projetos enfrentam a oposição de Washington, que não quer transformar o Irã em corredor dos hidrocarbonetos do Cáspio.
A empresa americana Unocal expressou interesse em construir um oleoduto e um gasoduto entre o Turcomenistão e o Paquistão, através de território afegão (rota 11). Geográfica e economicamente, a ideia tem sentido, mas o obstáculo é a instabilidade política crônica no Afeganistão.
O Afeganistão surgiu como Estado-tampão, na moldura da disputa anglo-russa do século XIX. Essa entidade geopolítica artificial reúne grupos étnicos e culturais dispa-ratados, cujas histórias estão associadas às dos povos dos países vizinhos: Paquistão, Usbequistão, Tadjiquistão e Turcomenistão. A fronteira cultural básica separa os tadjiques, usbeques e hazaras do norte à numerosa etnia pashtun do sul.
O país é cortado diagonalmente por dois grandes sistemas montanhosos, separados pelo extenso vale do rio Cabul, que é tributário do Indo. Ao longo da história, os con-quistadores do Afeganistão sempre conseguiram se estabelecer em Cabul, mas jamais tiveram o controle das cordilheiras, que funcionam como santuários e plataformas para os guerrilheiros. Os britânicos, no século XIX, e os soviéticos, no século XX, vivenciaram as dificuldades intransponíveis que a geografia física coloca diante dos empreendimentos de controle do conjunto do território afegão.
Sob a perspectiva da antiga União Soviética, o Afeganistão era um elemento geo¬político crucial para a estabilidade da Ásia Central. Uma influência decisiva de Moscou sobre o Estado afegão parecia indispensável para evitar o surgimento de movimentos separatistas muçulmanos nas repúblicas soviéticas da Ásia Central. Quando, em 1979, essa influência foi abalada por uma mudança de regime em Cabul, a União Soviética deflagrou a aventura de ocupação militar do Afeganistão.
Durante uma década, o Afeganistão foi o "Vietnã da União Soviética". Os guerrilheiros mujahedin afegãos receberam financiamento dos Estados Unidos e da China. Armas e suprimentos fluíam através do Paquistão. Controlando as montanhas, sob a direção dos "senhores da guerra" regionais, os mujahedin jamais permitiram a consolidação do domínio soviético, que se limitava a Cabul e a algumas rotas estratégicas. A desmoralizante retirada soviética, em 1989, contribuiu para acelerar a crise que conduziria à implosão do "império vermelho". Do ponto de vista paquistanês, o Afeganistão apresenta um duplo interesse. De um lado, a influência sobre o país vizinho permitiria que o Paquistão se tornasse o corredor principal entre os hidrocarbonetos do Cáspio e o mercado mundial. De outro, o controle sobre o regime de Cabul conferiria ao Paquistão a profundidade estratégica *j necessária para sustentar um prolongado conflito com a índia. Depois da retirada soviética, o Estado afegão entrou em virtual dissolução, como resultado da guerra entre as facções mujahedin rivais. Nesse ambiente, sob o patrocínio paquistanês, surgiu o grupo fundamentalista Taleban, que chegaria ao poder em 1997.
O Taleban nasceu nas escolas sunitas mantidas por grupos islâmicos fundamentalistas do Paquistão, nos dois lados da fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão. Financiado e armado pelos serviços secretos paquistaneses, o Taleban aproveitou-se da guerra clânica afegã para conquistar apoio popular na etnia pashtun, que habita o sul e oeste paquistanês e o sul afegão. O controle dos "guerreiros da fé do Taleban sobre Cabul e o Afeganistão meridional encurralou os grupos mujahedin enfraquecidos no norte do país.
No poder, o regime Taleban implantou a lei corânica e isolou o Afeganistão da comunidade internacional. A sua radicalização fundamentalista conduziu a Rússia a financiar a guerrilha residual dos mujahedin e provocou tensões crescentes com o Irã xiita. Em pouco tempo, até mesmo o Paquistão descobriu que o Taleban não podia ser controlado do exterior.
Os atentados de 11 de setembro em Nova York e Washington foram fruto da coope-ração entre o regime Taleban e o grupo terrorista islâmico Al-Qaeda, liderado pelo saudita Osama Bin Laden. A Al-Qaeda surgiu a partir da ruptura de Bin Laden com a monarquia saudita, em virtude da aliança da Arábia Saudita com os Estados Unidos na primeira Guerra do Golfo, em 1991. O líder terrorista, que havia combatido a ocupação soviética ao lado dos mujahedin, na década de 1980, instalou o seu quartel-general no Afeganistão e, sob a proteção do Taleban, conclamou à guerra santa contra os Estados Unidos.
A intervenção americana e a derrubada do Taleban, no início de 2002, assinalam o início de uma nova etapa na história turbulenta do Afeganistão. O regime instalado em Cabul, sob o patrocínio de Washington e das Nações Unidas, representa uma coalizão ampla de lideranças étnicas e clânicas. A coesão desse regime estruturalmente instável depende da presença de forças militares estrangeiras. Mesmo assim, o poder governa¬mental só se exerce plenamente na área de Cabul, pois diferentes "senhores da guerra" mantêm o controle das regiões distantes da capital e forças do Taleban e da Al-Qaeda atuam intensamente no sul e no leste do país.
A campanha no Afeganistão proporcionou a Washington a oportunidade para o estabelecimento de bases militares nas repúblicas centro-asiáticas vizinhas, que fazem parte da CEI. No plano geopolítico, a presença militar americana em Estados do "Exterior Próximo" da Rússia seria inimaginável antes do 11 de setembro de 2001. A manutenção dessas bases e o estreitamento de laços diplomáticos com os governos centro-asiáticos conferem aos Estados Unidos uma forte influência na macrorregião, que certamente se desdobrará no novo "Grande Jogo" pelo controle dos recursos naturais do Cáspio.

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